Conto #8
Naquele dia de outubro, Vasco apanhou o elétrico 24, de volta à sua nova casa no velhinho bairro de Campolide. Apesar de o fazer há já alguns meses, ainda adorava esquecer mais um dia passado entre pareceres e acórdãos, atravessando Lisboa, numa viagem lenta, frequente, mas nunca igual. Saía, ligeiramente antes da hora de ponta, para poder sentar-se à janela. Recostava-se, abstraindo-se de tudo quanto lhe estava próximo e dos passageiros que entravam e saíam numa agitação constante e concentrava-se, totalmente, na paisagem da velha cidade, numa quase-meditação.
Gostava, especialmente, do trajeto entre o Ascensor da Glória e o Largo do Rato, pleno de janelas e telhados que o transportavam para outras épocas. Ao sábado, pegava na Leica e passeava até esta zona, passando pelo jardim das Amoreiras, para captar imagens das suas novas descobertas. Era o seu escape das letras.
Nunca tinha pressa de chegar a casa, pois nada nem ninguém o esperavam, para além de um pequeno rádio a pilhas e o jornal do dia. Ao domingo, ouvia o relato do seu Benfica.
Não raro, nas suas viagens semanais, os pensamentos faziam a sua própria viagem para cenários em que partilhava a sua vida com alguém e em que chegava a casa e, entre refogados, desabafava os pormenores dos casos mais incríveis que escriturava.
Na última semana, ao sair na paragem, onde o 24 dava a volta, começara a ser seguido por um cachorro até à porta da sua casa. De manhã, lá estava o canito que, mal o via, se levantava e o seguia, novamente, até ao elétrico. Não nutria grande amor por animais, desde que, com 7 anos, tinha sido abocanhado por um cão, ao tentar escalar o muro do vizinho para onde lhe tinha fugido uma bola.
Agora, ao voltar do trabalho, lá estava o cachorrito, a cada dia que passava, com um aspeto mais emaciado.
Ao 7.º dia, vencido pela compaixão, Vasco guardou o osso da costeleta do jantar e ofereceu-o ao cachorro, logo pela manhã. Este, surpreendido e muito agradecido, não o seguiu até ao elétrico, preferindo ficar no seu poiso a roer a iguaria. Ao final da tarde, lá estava ele à espera, ansiosamente, que Vasco chegasse no 24.
Nem a chuva e o frio o demoviam e, mal avistava Vasco, punha-se no seu encalço, guardando a distância apropriada a um cachorro sem dono, sempre à espera de ser enxotado com um coice. Assomado por uma súbita pena do animal, naquele dia especialmente frio e chuvoso, Vasco esqueceu-se do seu trauma e convidou o cãozinho a entrar na sua casa. Amanhou uma mantinha velha que colocou junto ao fogão, encheu uma malga com água e esperou que o cachorro se deixasse de cheirinhos pela casa e se deitasse.
A rotina repetiu-se nos dias seguintes e, num piscar de olhos, Vasco tinha um inquilino peludo.
Dolores, a porteira a quem nada escapava, interpelou-o nas escadas, explicando que o cachorrinho, Fiel, de seu nome, pertencera ao inquilino anterior que tinha emigrado e o tinha deixado para trás, sem remorsos. Acrescentou que Fiel acompanhara, durante anos, o seu dono ao elétrico, todos os dias e esperava por ele para, juntos, retornarem a casa, no final da jorna. D. Dolores, ainda tinha tentado dar-lhe guarida, mas não conseguiu contrariar a vontade de seu marido que, não detetando em Fiel qualquer espírito vigilante, se recusou a aceitar mais um inútil em casa (“Para isso já nos basta o nosso filho” – assim, sem oferecer possibilidade de contraargumentação à desolada porteira, rematou a conversa).
No sábado, Fiel acompanhou Vasco até ao Largo da Trindade para uma sessão fotográfica em que também foi estrela e, em duas semanas, tornaram-se inseparáveis, unha e carne (esta última, o petisco favorito de ambos).
No final de cada dia de trabalho, Fiel esperava o seu novo dono para voltar à sua casa de sempre, já sem medo de ser escorraçado.
Deitava-se na sua mantinha e adormecia, reconfortado, a ouvir o seu dono falar. Não percebia uma palavra e Vasco sabia-o, mas já ansiava por voltar a casa e desabafar com o seu fiel amigo.