Conto #10
Ricardo navegava numa maré de pouca sorte. A barriga, a carteira e a sua companheira nunca estavam satisfeitas. Cacilda passava os dias em casa, entre livros e chávenas de chá e pouco preocupada com limpezas e arrumações. Gastava o dinheiro do casal – mais depressa do que ele entrava -, na livraria do Sr. Fernandes, em modas e no café do bairro. “Um dia, vou ser doutora”, assim tentava justificar os seus dias folgados. Várias vezes, ameaçara deixar Ricardo e só não o tinha feito, ainda, por respeito às promessas oficiosas de amor eterno que tinham feito 7 anos antes.
Ricardo arrastava, o mais possível, os seus dias fora de casa, para reduzir, também o mais possível, o convívio com tal desmazelo e desapego e, neste final de tarde, passeava por Lisboa, olhando para a calçada portuguesa e pontapeando uma e outra pedrita, sem rumo. Tinha uma única nota no bolso, a última desse mês, mas, ao passar pela loja de câmbios e lotarias, foi invadido por tal impulso para jogar que entrou, sem pensar duas vezes, no estabelecimento.
Se Cacilda sonhasse que ele estava a jogar, iria recriar o inferno na Terra, pelo que Ricardo guardou o bilhete de lotaria, com muito cuidado, no saquinho de tabaco (que ela não suportava) e abalou para casa, com pouca vontade, mas cheio de fé.
Como faltava pouco para a lotaria andar à roda, mudou de ideias e dirigiu-se a um quiosque de revistas onde um pequeno rádio a pilhas anunciava a extração para daí a breve.
Resolveu esperar, apertando a cautela na mão, com quanta força tinha. A cada minuto que passava, a ansiedade ia crescendo e começou a imaginar o que faria, caso lhe saíssem os números vencedores: como poderia fazer a sua Cacilda feliz, finalmente ser o homem que ela ansiava que ele fosse, talvez casar… Dar-lhe a casa que ela queria, com lareira e um jardim com pomar. Viajar…
Às 6 e 3 minutos, a roda começou a girar e Ricardo abriu a sua cautela: 2, sim!, 4, sim! – o coração acelerou mais um pouco, 6!… sim!, 7!, – “meu Deus, não estou a acreditar”, 9!- “tenho, tenho” – disse alto… 1… “ganhei, ganhei”, gritou silencioso, estava eufórico por dentro, mas reservado por fora, não sabia para onde ir, o que fazer, quem abraçar, apetecia-lhe dançar, gritar a plenos pulmões, gastar energia, correr … e foi isto que fez.
Desatou numa corrida até casa, no Bairro da Penha de França, louco para contar do seu fortúnio a Cacilda, doido para rever a expressão de amor com que a conhecera, mas que há muito não vislumbrava. Que saudades dessa sensação… que agora podia comprar de volta! Abriu a porta do prédio e correu os três lanços de escadas acima, com tal pressa de chegar que tropeçou e quase caiu. Tocou à campainha, para ser mais rápido, não queria perder mais tempo, mas Cacilda não abriu.
Colocou a chave na fechadura e entrou em casa a correr, percorrendo em todas as divisões à procura dela. Cacilda não estava em casa, “mas que raio, por onde andará ela?”.
Em cima da mesa da sala, por entre livros abertos e fechados, chávenas de chá manchadas e uma pilha de roupa desdobrada e por engomar, encontrava-se um envelope grená, com o seu nome escrito à mão, em letras garrafais.
Dentro, uma mensagem curta, manuscrita na bonita letra de Cacilda (uma letra que podia ter sido de qualquer pessoa, menos de doutor, pensou, ironicamente). “Querido Ricardo, não aguento mais esta vida que não nos está a levar a lado nenhum. Mereço muito mais. Fica com o pouco que temos. Já tratei de tudo há algum tempo, vou emigrar para França, procurar uma vida melhor. Cacilda.”