Na casa-grande dos Nogueira – assim era, carinhosamente, apelidada por conta da sua extensão -, o natal era mesmo muito especial. Situada na Av. da República e contígua à Mansão dos Viscondes de Valmor, a enorme casa não fazia corar a sua faustosa vizinha.
Rosa, a matriarca que recebia a família para o almoço do grande dia, começava os preparativos das festas no dia 1 de novembro.
Neste dia, montava a árvore, com os netinhos e, por ela, nunca a desmontaria. Mas Duarte, o marido, dizia que, se assim fosse, deixaria de ser especial, pois a rotina assim o imporia e ela acabou por concordar. Gostava quando, juntos, subiam ao sótão, atulhado de velharias, jornais e revistas antigas e traziam, para baixo, a caixa de decorações.
Entre estas contavam-se peças belas, reluzentes e únicas que fora acumulando aos longo dos seus 76 anos de vida. Oferendas de amigos e familiares viajados que a relembravam velhas amizades e a transportavam para outras paragens, com tradições e imagens diferentes, mas o mesmo espírito.
Dentro da caixa mágica, encontrava-se uma arca, forrada a pele, onde Rosa guardava o seu maior tesouro: projetos natalícios criados pelos quatro filhos e oito netos, quando pequenitos. Alguns feitos com a mãe, outros com os avôs. Peças de argila, madeira e feltro, pintadas ou cozidas à mão e salpicadas, anarquicamente, de brilhantes, com mensagens de amor puro escritas em letras tortas, mas (para Rosa) perfeitas.
Costumava dizer que se a sua casa ardesse, pegaria na caixinha de decorações e correria porta fora, deixando tudo o resto para trás e, não raro, planeava guardar a arca mais perto de si, para não ter de subir ao sótão, em caso de urgência. Juntá-la-ia ao enorme jarro transparente cheio de pedras, pauzinhos e conchas que os filhos, pequeninos, lhe davam quando, nas férias e ao fim de semana, passeavam pela praia e pelo campo. Este jarro era motivo de chacota por toda a família, mas Rosa era uma mulher segura das suas prioridades.
Durante todos os dias da época festiva, mantinha acesas velas com cheiro a natal – canela, gengibre, maçã, citrinos e chocolate – que ela própria confecionava numa pequena mesa retangular na grande cozinha forrada a azulejo português, ao fundo da casa-grande.
E que delícia era entrar na casa-grande. Quando Rosa abria a porta, os convivas eram invadidos por uma onda de calor com a fragrância do dia e a suave luz amarelada das velas que piscavam alegremente, numa suave dança descoordenada que se distribuía por todos os recantos.
No dia 1 de dezembro, numa tradição que haviam iniciado no primeiro ano do seu casamento, Rosa e Duarte iam à Baixa lisboeta comprar um bolo-rei na Confeitaria Nacional e convidavam a família para um lanche ajantarado que abria, oficialmente, as festividades da época. Era uma época de ainda mais amor, calor, luz e tradição para a família Nogueira.
De todos estes preparativos, havia um que se destacava e, pelo qual, a família trocaria, de muito bom grado, tudo o resto. Era o famoso “bolo de delícias de natal”, cuja receita ficara escrita no livro de receitas da trisavó Helena. Na capa, em elegantes letras, delicadas e ondulantes, o nome que dera à sua compilação: a “Collecção de receitas portuguezas”. Curiosamente, a receita do bolo fora criada pelo seu marido, Gonçalo, anglófilo assumido e grande apreciador de frutos secos. A fórmula mágica era passada de geração em geração, para a primeira menina a nascer, quando a sua mãe atingisse 75 anos de idade (ou antes, se a mãe assim o entendesse).
A tradição estava assegurada e o livro tinha sido entregue, no ano anterior, a Leonor, a primogénita de Rosa e Duarte. Acompanhava-o uma velhinha faca de cozinha que pertencera à sua trisavó e que devia ser utilizada na preparação da iguaria e embrulhada, bem seca, num pano de linho bordado com as iniciais de Helena e Gonçalo, quando não em uso.
O ritual de passagem era sempre um momento de grande circunstância e o natal anterior não tinha sido exceção. A ocasião ficara registada num álbum fotográfico criado para guardar recordações deste momento e em cuja foto inicial constavam Helena e Gonçalo, com a sua distintiva elegância oitocentista. Com o passar do tempo, o álbum ganhara uma patine que obrigava a manuseá-lo com muito cuidado, no dia de natal, enquanto se contavam histórias e desnudavam segredos de um tio-avô mais excêntrico ou de uma prima já falecida e demasiado libertina para a sua época. Momentos deliciosos, a todos os níveis e que reforçavam as relações fraternas daquela família.
O “bolo de delícias de natal” era feito à base de ingredientes simples, mas ricos e exalava luxo e extravagância. Tinha uma consistência firme e crocante, absolutamente única, a que não era alheio o facto de ter de ser mexido com colher de pau, exatamente, 33 vezes (a idade da morte de Cristo). Os Nogueira eram uma família de fortes tradições, de sólida base cristã e não só na aparência.
O bolo era sumptuosamente montado em camadas cuja espessura não podia ultrapassar dois dedos, depois de cozidas. O rigoroso ritual da sua preparação e a atenção na escolha dos ingredientes produziam um gosto que que não se encontrava em nenhum outro alimento e foram ditando a necessidade de reunir a sua confeção num só membro da família. Mas todos eram convidados a participar na sua confeção. A especificidade dos passos era tanta que só após muitos anos a confecioná-lo, o bolo se acercava da perfeição. Aquando da inclusão dos ingredientes secretos (que só quatro mulheres na família alguma vez conheceram), todos os presentes se ausentavam da cozinha, com exceção da depositária da receita.
As camadas do bolo continham pedaços de nozes, avelãs, amêndoas e praliné crocante, toscamente laminados pela faca herdada, que não podia ser afiada, sob pena de arruinar a obra. Também continha cerejas cristalizadas e sultanas, num jogo de texturas contrastantes e consistência crocante, que se mantinha mesmo depois de sair do forno. As camadas alternavam com grossas lascas do mais rico chocolate de leite que, por conta do mesmo providencial milagre natalício (ou talvez dos ingredientes secretos), não derretiam com o calor.
Tudo era regado com uma mistura dos quatro ingredientes líquidos – que apenas a detentora do livro conhecia e na proporção de 2 para 3 –, com casca ralada de limão caramelizado. Os múltiplos estratos resultavam numa preparação sumptuosa e decadente, iguaria ímpar, de sabor incomparável, como único é o sabor de morangos ou café. Um sabor que, de entre todas as famílias do mundo, apenas os Nogueira conheciam, o que unia, ainda mais, esta família, tão próxima como ervilhinhas numa vagem.
Depois de cozido, o preparado era coberto por uma sedosa e luxuriante camada de creme de manteiga perfumado de gengibre e pó de cardamomo fresco e polvilhado de drageias de prata e ouro e pérolas açucaradas que rematavam o banquete visual. Era cuidadosamente apresentado num belo suporte antigo de prata esterlina, na família, há quatro gerações.
Saboreá-lo era uma experiência sublime. Uma harmoniosa sinfonia culinária de agrado supremo para toda a família… exceto para bisavó Isabel.
Filha de Helena e mãe de Rosa, a “bivó” abominava a iguaria e só a provara uma vez, há muitos, muitos anos atrás, cuspindo-a, logo de seguida para embaraço inicial e risota final gerais. Os Nogueira eram uma família de bons costumes, especialmente à mesa, “onde se vê o berço”, como dizia Duarte.
A “bivó” Isabel adorava comer. Estava sempre bem-disposta e ria constantemente, mostrando uma bela dentição para a idade. Gabava-se de nunca, na sua já longa vida, ter comido algo de que não gostasse e, de facto, a bagagem corporal que carregava testemunhava-o. Mas recusava-se a tocar no bolo. A única altura do ano em que o seu lado mais sério aflorava, era quando a iguaria vinha para a mesa. Todos os natais, nesse momento, Isabel cerrava o semblante, a boca e os punhos de forma desconcertante e confundia os presentes, habituados à sua inabalável boa disposição. Enquanto todos, finalmente, se deliciavam, Isabel escusava-se da mesa e saía, – não tão lentamente como usava -, para a cozinha onde, à janela, olhava o infinito do pequeno jardim que ladeava a casa-grande.
Naquele natal, a família havia terminado o almoço e aguardava a entrada do bolo, com os olhos a pular entre a porta e a “bivó”. Leonor vinha a caminho. Trazia a estrela da refeição e um novo segredo para desnudar…
Leonor esperara, ansiosamente, desde criança, pela honrosa oportunidade de presentear a sua família com o histórico bolo, mas a sua primeira experiência a confecioná-lo não tinha corrido como esperado. O bolo tinha de ser cozido no próprio dia e acontecera um desastre… Ao ser desenformado, desmoronara totalmente e sem remédio. Leonor sabia porquê: tinha mexido a massa 34 vezes…
Conseguira fingir boa disposição durante toda a celebração, mas, a proximidade do momento mais esperado do dia, estava a aguçar-lhe a ansiedade. Cumprindo a tradição, a “bivó” Isabel manteve-se sentada e as luzes foram desligadas, deixando a sala tenuemente iluminada com o brilho das velas dispostas sobre a mesa ampla. Leonor fez a sua entrada com o bolo desmanchado em cima do belo suporte prateado e rezou para que as luzes se mantivessem apagadas. Mas o bolo pedia claridade para ser admirado e cortado e, assim que a sala se iluminou novamente, Leonor soltou uma lágrima perante a reação espantada dos seus familiares.
De imediato, a “bivó” Isabel, reparando na tristeza da sua bisneta favorita, esboçou um belo sorriso leitoso e genuíno e exclamou: “Que maravilha, minha querida! É este ano que vou prová-lo!”.
Estupefactos, os restantes convivas entreolharam-se, mas a cortesia inibiu qualquer comentário. A primeira “fatia” foi servida à “bivó”, que a deglutiu em dois tempos e clamou: “o melhor bolo que já comi na vida!”.
“Mas como, “bivó”? O bolo está tão feio e logo hoje é que o experimenta?”, bradou, inocentemente, o seu bisneto mais novo.
“Oh, meu querido! É eu nunca consegui comer este bolo por causa da placa que coloquei há muito, muito tempo, quando parti três dentes ao trincá-lo, ainda vocês não eram nascidos! Mas o bolo da Leonor vem todo desmanchadinho e macio e está a saber-me pela vida! Obrigada, Leonor, por teres feito este bolo tão perfeito para mim!”.