Conto #6
Aurélia vendia castanhas, no Largo da Anunciada, em Lisboa, desde os 13 anos, primeiro com o seu avô, depois com o seu pai e, agora, sozinha, a primeira mulher da família a fazê-lo. As três gerações tinham criado nome no ramo e a clientela passava de pais para filhos, para netos, pois castanha com a sua “Enxerta”, de cor muito clarinha e irrepreensivelmente assada no ponto, não se encontrava em mais lado nenhum. Era escusado procurar e os lisboetas sabiam-no. Muitos tentavam, mas sempre desistiam e voltavam à sua venda.
Todos os dias, antes de sair de casa, trocava demorados mimos com os filhos e com o marido. Em 22 anos de casamento, nenhum abdicava deste momento de ternura que os preparava para um dia separados. No café do Sr. Augusto, bebia um galão e, só depois, pegava no pesado assador das castanhas e nas duas caixas de madeira com o restante material e deslocava-se, em passo lento, até ao seu poiso, onde entre clientes, trocava dois dedos de conversa com as pessoas que passavam e que havia habituado à sua presença.
Sob chuva ou sol, com os seus óculos na ponta do nariz e um emblemático chapéu azul na cabeça, era esta a sua rotina, nos meses mais frios, há três décadas. Nunca, por um dia, desejara ter outra vida. Só tinha o desgosto de não poder comer o belo fruto, demasiado pesado para o seu estômago débil.
Às 5 da tarde, devolvia o material ao seu lugar de descanso noturno e dirigia-se à retrosaria da Anicas onde, numa salinha dos fundos, praticava croché com três amigas de longa data e aproveitava para pôr a conversa em dia. No final de um dia de trabalho, as mãos pediam-lhe o toque suave da lã.
A noite era sempre passada em família: o marido – excelente cozinheiro -, a tratar do jantar e Aurélia, da hortinha, no pequeno pátio do humilde rés do chão em que habitavam. Depois do jantar em família, tratava da loiça – a seu pedido -, pois adorava sentir o calor da água nas mãos gretadas pelo frio de Lisboa.
Quando a época da “Enxerta” terminava, ajudava o seu pai, sapateiro da velha guarda, a coser solas numa máquina de costura que manejava como mais ninguém. Era preciso ter mãos para a domar e as suas eram experientes em todas as condições.
Naquele dia frio de outono, pela hora de almoço, estava à conversa com o Sr. Ramiro, um vizinho reformado com quem gostava de trocar ideias e falar das últimas da bola (um gosto que lhe fora passado pelo marido), entre cortes transversais no fruto e sacudidelas no assador repleto de sal grosso e acinzentado. De vez em quando, interrompia a conversa para embrulhar uma dúzia de quentes e boas num pacotinho de papel retirado de uma velhinha lista telefónica de capa amarela ou em jornal, ou para dar o troco a um cliente.
Nesse dia, o Ramiro vinha endiabrado: “‘ ‘Orélinha – era assim que, carinhosamente, a chamava -, já alguma vez pensaste em registar a tua marca de castanhas, personalizar o teu produto com uma imagem própria estampada em sacos de papel, comprar um carrinho e aumentar o preço da dúzia? Com tanto turista que p’raí anda, devias modernizar-te” – perguntou, com arrojo.
“E por que faria eu tal coisa?” – respondeu, com uma pergunta.
O amigo explicou-lhe que assim podia aumentar a margem de lucro e mudar a sua vida.
“Mas eu gosto da minha vida” – retorquiu.
“Como assim?” – indagou o Ramiro, “Podias retirar muito mais dos teus dias! O que fazes da tua vida, para além de vender castanhas, no mesmo sítio, todos os dias? Ainda és jovem, pá, por que não aproveitas melhor o teu tempo agora para trabalhares mais e aumentar os teus lucros? Ai, se eu pudesse voltar atrás…”.
“Mas aumentar os lucros em nome de quê? – Aurélia tentou, em vão, explicar-lhe o prazer que retirava das suas pequenas rotinas diárias, com a família, as amigas, o croché, a horta.
“Podias ter isso tudo e muito mais, se estivesses disposto a investir um pouco mais no teu negócio e até, eventualmente, abrir a tua própria loja”.
“Mas como teria eu tempo para tudo o resto que me faz feliz agora?”
“Podias estar a trabalhar agora para ter tudo o que te faz feliz quando te reformasses. Olha para mim, que tenho tempo para dar e vender, mas não tenho cheta…”.
“Ramiro… não partilho da tua forma de pensar” – concluiu Aurélia – “eu sei lá se estou viva amanhã… quero aproveitar o que tenho agora…”.