Conto # 5
Lúcia Albina vivia num belo palácio do séc. XVII, junto ao Largo do Mitelo, em Lisboa. Passava a vida entre magníficas mobílias de estilo império, brocados exóticos e delicadas porcelanas. Tinha tudo o que poderia desejar, ou assim o pensava, pois, nos momentos de reflexão, sentia uma inquietude que não conseguia explicar e que associava à fase adolescente por que passava.
Estava destinada a casar com um aristocrata e a dedicar os seus dias à maternidade e era para isto que estava a ser educada, mas sentia-se entediada e, secretamente, temia que o futuro projetado não lhe proporcionasse satisfação suficiente para amputar este sentimento. Não tinha confidente pois era educada em casa e, a tutora, senhora de avançadíssima idade, não lhe dava espaço para veleidades.
O francês, o piano e os bordados eram muito mais importantes para uma senhorita da sua idade. Lúcia aproveitava todos os momentos livres para se dedicar à sua verdadeira paixão: o desenho.
Refundidos numa das gavetas da escrivaninha que herdara da sua avó Onélia, encontravam-se um bloco de papel e uma caixa de lápis de cor que utilizava para fazer pequenas ilustrações de objetos e situações quotidianas que a inspiravam: uma chávena de chá de porcelana inglesa a repousar num tabuleiro de prata, o reflexo do enorme jacarandá – que enquadrava a vista do seu quarto -, num dia molhado e ventoso, as pantufas de seu pai, perfeitamente alinhadas, à beira da cama, uma panela de cobre, por lavar, na bancada da cozinha… ansiava por aperfeiçoar a sua técnica, desenhando objetos maiores, como estátuas e edifícios que apenas conhecia de livros.
Em 8 anos, D. Gertrudes nunca faltara um dia, mas, naquela segunda-feira, fora acometida por um ataque de alergia tal que nem os olhos se lhe abriam. Rita não sabia o que fazer ao seu tempo e, na ânsia de fazer um desenho maior, saiu porta fora, sem avisar.
Já fora das paredes protetoras do velho palácio, sentiu o fresco da manhã e seguiu para norte, no sentido de uma rua que sempre lhe despertara a curiosidade, por ser a única que vislumbrava da janela do seu quarto.
Queria ver, de perto, a porta do primeiro número, cujo estilo conhecia apenas dos livros. O edifício era mais belo do que alguma vez, ao longe, poderia ter imaginado.
As janelas circulares, de elaborados vitrais coloridos e a porta exuberante, de formas ondulantes e elegantes que ocupavam metade da fachada estreita, quase anulavam o facto de estar, desesperadamente, necessitado de obras de restauro.
Registou, mentalmente, esta imagem, para, posteriormente, desenhar e continuou a caminhar em direção ao largo que só conhecia de passagem, através dos vidros do automóvel de seu pai. E foi aí que a magia do bulício lisboeta a assaltou, pela primeira vez: as vendedoras de peixe gritavam os seus refrões, concorrendo com o vendedor de castanhas e a senhora das flores, na bancada logo em frente.
No meio da praça, um grupo de crianças, dispostas em círculo, entretinha-se a atirar pedrinhas, tentando acertar num pedregulho, ao centro. Convidaram-na para se lhes juntar e ela, envergonhada, aceitou, verificando, com entusiasmo, que era dona de uma pontaria muito certeira. Depressa se tornou a nova heroína do bando e logo foi alcunhada de “Esmeralda”, fruto dos seus olhos verdes e da sua destreza com pedras.
Quando o grupo de dissipou para correr atrás de um gato que passeava com os restos espinhosos do pequeno-almoço, na boca, Lúcia dirigiu-se para a bancada das flores, atraída pelo cheiro e variedade de cores. “Oh, cara bonita, o que vai ser, hoje?”, perguntou a vendedora. “Estou só a ver”, respondeu, corando – nunca tinha comprado nada na vida, nem saberia como fazê-lo. Reconhecia muitas das flores, impressas nos livros de gravuras de seus pais: orquídeas, crisântemos, gladíolos, rosas e coloridas tulipas – as suas favoritas -, a anunciar junho. Gostaria de poder levar um ramo para sua amada mãe, mas continuou a caminhada, entrando numa ruela estreita e mais escura.
Ao fundo, uma mulher pendurada na janela de primeiro andar de um prédio a clamar por carinho, pendurava roupa e conversava com outra, parada na rua de calçada portuguesa, com um pesado cesto na cabeça, que equilibrava com um só braço. Admirou-se com a naturalidade com que a conversa fluía, sem diminuir de tom à sua passagem, mas acelerou o passo para devolver as duas mulheres à privacidade.
No final da rua, o sol voltou e, olhando em volta, vislumbrou a sua casa, à direita. Decidiu voltar. Ao entrar pela enorme porta e após ter explicado, em segredo, à governanta, por onde tinha andado, sentiu um conforto diferente. Aquele passeio de uma hora, despertara sensações que nenhum dos livros que lera conseguira transmitir. Desejosa de passar as suas experiências para o papel, fechou-se no seu quarto e pegou no bloco e lápis para as registar. Agora sabia onde ir buscar inspiração eterna para desenvolver a paixão que agora sabia ser o seu desígnio: pintar.