Conto #4
Todos os dias de manhã, antes de entrar no escritório de contabilidade onde trabalhava, na Rua Ferreira Borges, Augusto sentava-se na mesa do costume, à janela, na Pastelaria “A Tentadora” e pegava no seu livro. Uma pausa com letras que o preparava para o dia com números.
Não precisava de falar com o garçon, pois o pedido era sempre o mesmo: um café, um pastel de nata e um copo de água.
Dedicava três ou quatro minutos a observar quem passava na rua, atualizando-se relativamente às últimas modas – com especial enfoque nos chapéus – e afundava-se na leitura de mais um capítulo.
Nada o distraía, nesta breve viagem literária e a rotina repetia-se, sem sobressaltos, quotidianamente.
Naquela terça feira, sentou-se, como de costume e começou a ler o 3.º capítulo do livro que iniciara dois dias antes, “A cidade e as serras”. Riu, para si mesmo, ao ler a descrição da rotina de Jacinto, comparando-a com a sua própria, na mesa de toilette, todas as manhãs. Seja qual for o cenário e onde quer que estejamos, somos todos tão parecidos, concluiu.
Na mesa ao lado, alguém tossiu e Augusto tirou os olhos do livro para os pousar numa senhora, de longos cabelos ruivos – cuidadosamente enrolados num coque -, grandes olhos castanhos e um sorriso que abrilhantava a sala mal iluminada para aquele dia tão cinzento. Constatou, com grande surpresa, que a senhora estava a olhar para ele e que o sorriso lhe era dirigido: “Em que parte do livro está? Eu comecei-o hoje.”, perguntou, levantando o livro que estava a ler – era a mesma obra de Eça.
Surpreendido com tal espontaneidade, Augusto pigarreou e, enrubescido, respondeu “Iniciei, agora o capítulo 3”. “É um excelente livro… achei curioso estarmos ambos, no mesmo espaço, da mesma cidade, a ler o mesmo livro. Não o perturbo mais! Boa leitura”.
Augusto não mais conseguiu concentrar-se na história de Jacinto, tal era vontade de continuar a contemplar a beleza da companheira de café. Ergueu-se da cadeira, pediu licença, pegou no seu chapéu e saiu porta fora.
O dia correu imperturbado, mas os balanços e balancetes descobriam todo um novo encanto, tal era a ânsia de saber se iria encontrar a senhora dos cabelos ruivos, no dia seguinte.
Quarta-feira, em frente do espelho, esmerou-se no seu aprumo e saiu, à mesma hora, mas com um ânimo diferente, porta fora.
Ao dobrar a esquina d’“A Tentadora” viu a leitora de Eça entrar no estabelecimento, desacelerou o passo e seguiu-a, sentando-se na mesma mesa, à janela, após um breve aceno de reconhecimento com a cabeça.
“Bom dia, cá nos encontramos outra vez! Não consegui pousar o livro!”. “Bom dia, minha senhora. De facto, é apaixonante. Eça nunca nos desengana.” – Na realidade, Augusto não tinha lido nem mais uma página. Primeiro, porque não conseguira concentrar-se e, depois, porque queria atrasar a leitura e aproximar-se do ponto onde a companheira de leituras e café se encontrava.
Maria Rosa – este era o seu nome – sentara-se na mesa ao lado e a conversa fluiu, sem que algum deles tivesse pegado no seu livro. Augusto estava fascinado com a sua beleza, simpatia e com o tanto que tinham em comum. O tempo passou sem que se tivesse dado conta e, a dada altura, teve de escusar-se pois já estava atrasado para o trabalho. “Então, até amanhã. Foi um prazer!”. Mais descontraído, pegou no livro e no chapéu e saiu, ansiando que o dia passasse depressa para se poder encontrar, novamente, com Maria Rosa que, ao contrário da personagem Jacinto da obra cuja leitura partilhavam, se mudara do campo para a cidade para iniciar um novo trabalho.
Quinta-feira e Augusto acordou antes do sol. Bem penteado e perfumado, correu para a rua, rumo à sua pastelaria de eleição. Sentou-se no recanto habitual, mas Maria Rosa não apareceu. Que deceção tremenda. Augusto não sabia o que fazer da sua rotina… olhava, ansiosamente, para a rua, na expectativa de que a sua nova amizade aparecesse a correr por ter perdido o elétrico, mas tal não aconteceu. O café e o pastel de nata ficaram, intocados, em cima da mesa.
Triste e cabisbaixo, saiu da pastelaria, entrou no prédio do escritório, ao lado e subiu, de forma arrastada e vagarosa, os dois lances de escada até ao 1.º andar. Jerónimo, o colega, abriu-lhe a porta e disse “Bom dia, Augusto! Dois dias a chegar atrasado! Veja lá se a nova colega não lhe rouba o emprego!”. E, sentada na mesa do canto, junto à janela, estava Maria Rosa, com aquele sorriso a que Augusto já se tinha afeiçoado.