Conto #3
Segunda-feira, 7h12 da manhã e a semana começava torta. Ao entornar o café na cozinha, por causa do gato Pom-Pom, Américo tinha perdido 3 minutos do tempo contadinho da sua rotina matinal e, logo hoje, que tinha uma reunião importante às 8h45. Para poupar tempo, optou por não pentear o bigode e saiu porta fora para apanhar o 12 que parava a 20 metros da sua porta.
Estava um dia fresco, de meio do outono, mas o sol brilhava amiúde, tal como ele gostava. O ardina, Zé Letras, aproximou-se e vendeu-lhe, como habitualmente, o “Diário de Lisboa”, onde adorava, especialmente, ler a inovadora crítica de cinema, na sua pausa para almoço.
Sendo um homem de criteriosas rotinas, este primeiro percalço da semana já começava a pesar-lhe no espírito. Sentou-se atrás do condutor, num dos poucos lugares vagos, mas não sem antes varrer os olhos pela carruagem e reparar no cavalheiro que estava sentado imediatamente atrás de si. Teve a sensação de o conhecer muito bem, mas não conseguia recordar-se de onde. Sabia que iria matutar nisto, até se lembrar de onde conhecia aquela cara. A sensação de familiaridade era muita e a curiosidade corroía-o, mas conseguiu resistir à tentação de olhar para trás, durante toda a viagem.
Ricardo apanhara o 12, nessa manhã, por puro acaso. A mãe, Antónia, pedira-lhe que se deslocasse à “Farmácia Normal”, na Baixa Lisboeta, para aviar um medicamento manipulado. A fórmula magistral acompanhara-a desde que o marido a deixara, levando consigo um dos dois filhos gémeos. Na altura, a alternativa – não tendo ela possibilidade de sustentar três almas com o seu rendimento -, teria sido dar o bebé para adoção. Nunca recuperara desta escolha, feita há 37 anos e Ricardo tornara-se o seu melhor amigo, confidente e moço de recados. Mesmo passados estes anos, todas as noites adormecia a desoras, com a imagem do seu bebé, na cabeça.
O 12 aproximava-se da paragem da Praça da Figueira e Américo e Ricardo levantaram-se para apear. Américo, educadamente, deixou Ricardo passar, ganhando assim mais alguns segundos para observar bem o companheiro de viagem que ainda não conseguira localizar.
Já no passeio, entreolharam-se e a sensação de familiaridade aflorou ambos. Esboçaram um leve sorriso e cada um partiu à sua vida.
Américo afastou-se, muito baralhado – afinal a cara não lhe era tão familiar assim, talvez se tivesse bigode…. Já para Ricardo, que estava a par da história da separação e sonhava um dia reencontrar o seu irmão, este embate foi demasiado forte. Sabia que o tinha encontrado, mas não conseguiu reproduzir uma palavra. Decidiu que, no dia seguinte, iria apanhar o 12, bem cedinho e sair nas Portas do Sol para esperar a chegada do seu irmão e interpelá-lo. Chegara a hora de, finalmente, trair o destino.