O som, ligeiramente abafado, das solas de couro, no soalho em casquinha, acordou-o para mais um dia e para a rudeza da vida: o dono ia sair cedo, sabe Deus para onde. Apesar do seu nome, este Xerloque ainda não o deduzira qual o destino diário do seu melhor amigo.
Algumas pistas, como o cheiro com que o dono chegava a casa – passadas demasiadas horas -, diziam-lhe que passava o seu tempo com algo com que o canito se deparava muito nos seus passeios solitários pela Rua da Saudade, onde moravam. Sempre que fazia uma pausa na caminhada, para esvaziar mais um bocadinho da bexiga ou snifar um cantinho e calhava apanhar o maravilhoso fedor que lhe era tão familiar, mas que não conseguia identificar, vinha-lhe à memória o amado dono e o Xerloque esfregava-se no singular detrito, para o cheiro o perfumar e perdurar até ao reencontro.
O Sr. Almeida saía, bem cedo, de segunda a sexta, para a sua jornada de 17 minutos até aos Restauradores. Era lá que se encontrava a loja, aberta por seu pai, Estêvão, em finais dos anos 1940, especializada em restauração de livros.
Parava, sensivelmente, a meio do caminho, para beber a sua bica escaldada – sem princípio, a ¾ da chávena, com açúcar amarelo e pau de canela (em lugar da colher) -, na Confeitaria Nacional. Acompanhava a fumegante bebida com um “Austríaco”, o bolo-lenda da casa. O direito a este hábito doce e ligeiramente obsessivo-compulsivo tinha-lhe sido trespassado pelo seu adorado avô Manoel e, quando apreciava a iguaria, pensava nele e refletia, sempre com embaraçado orgulho, na sua longa experiência a encadernar, dourar e restaurar livros e na boa reputação de que auferia.
Para além do muito amor com que desenvolvia a sua arte, usava uma cola especial, à base de farinha, de que só ele possuía a fórmula, bem como ferramentas adaptadas e bem estimadas em que todos estavam proibidos de, sequer, tocar. O seu entusiasmo e zelo refletiam-se na qualidade final do produto oferecido e haviam contribuído para a ilustre e crescente clientela da Casa Almeida & Filho. O herdeiro não tinha mãos a medir: “as pessoas ainda leem” -, pensava, não raro e reconfortantemente, para com os seus botões – “e adoram estantes brilhantes e bem decoradas”.
A especialidade da casa era a sofisticada costura francesa cruzada, mas entre as obras de que mais se orgulhava ter executado, com as suas icónicas luvas de algodão branco, estava a “Aventura Maravilhosa de D. Sebastião, Rei de Portugal, depois da batalha com o Miramolim”, de Aquilino Ribeiro, de longe, o seu autor favorito.
A vida corria serena, não fora as saudades de Irene, amor da sua vida, que quase abalroara, quando a jovem senhorita parara, repentinamente, no estreito passeio da Rua da Saudade, para admirar, de longe, o topo da Sé de Lisboa. Após uma vida de dedicação mútua, Irene trocara-o, recentemente, pelo seu Criador e o Sr. Almeida tentava enxotar a assídua saudade prolongando, aos poucos, o seu dia na loja.
As saudades do Xerloque é que não diminuíam e, quando os sons do dia anunciavam o retorno a casa dos habitantes da rua, posicionava-se, estrategicamente, à frente da janela da Maria Aninhas – posto de vigília privilegiado para quem – como o cachorro e a vizinha – estava desejoso de matar saudades ou, quiçá, conhecer um novo amor.
A verdade é que, no dia seguinte, era sábado e o Xerloque nem sonhava que iria acordar ao som de pantufas no soalho de casquinha.